sexta-feira, 30 de março de 2012

Adulterações das Escrituras por Motivos Teológicos - I


Durante o segundo e terceiro séculos da era comum – aproximadamente no tempo em que estavam sendo escritos os últimos livros que ainda formariam o que chamamos hoje de Novo Testamento – havia uma particularmente rica diversidade teológica entre os primeiros cristãos.

Na verdade, essa diversidade era tão grande que muitos dos que se consideravam cristãos naquela época jamais seriam chamados cristãos hoje.

Durante essa época, além dos cristãos que acreditavam que havia um único deus, criador de tudo, também havia cristãos que acreditavam na existência de dois deuses, o deus do Antigo Testamento, o deus de Israel, o deus da ira, da guerra e da vingança, e o deus do Novo Testamento, o deus de Jesus, do amor, da paz e do perdão. O maior representante desse tipo de cristianismo chamava-se Marcion, uma figura importante que veremos com mais detalhes a seguir. Além disso, havia os cristãos gnósticos que acreditavam na existência de 12 deuses. Outros diziam ser 30. Outros ainda, 365.

Alguns desses grupos acreditavam, como os cristãos de hoje, que Jesus era 100% humano e 100% deus. Outros, que Jesus era 100% homem e 0% deus, mais ou menos como as Testemunhas de Jeová. Outros ainda achavam que Jesus era 0% humano e 100% divino. Existiam ainda aqueles que tinham a curiosa crença de que Jesus Cristo era composto por duas entidades distintas que dividiam o mesmo corpo: o humano Jesus e o divino Cristo.

Alguns grupos achavam que a morte de Jesus era o único caminho para a salvação. Outros, que a morte de Jesus não tinha nada a ver com salvação alguma. E outros ainda achavam que Jesus nem mesmo tinha morrido.

Enfim, havia uma profusão de crenças totalmente distintas, cada uma considerando a si próprio o verdadeiro e único cristianismo tal como foi ensinado por Jesus Cristo, enquanto todas as outras não passavam de heresias, deturpações.

Alguém pode se perguntar: Por que simplesmente não liam o Novo Testamento e tiravam as dúvidas? Oras, acontece que ainda não havia Novo Testamento. Para falar a verdade, alguns dos livros que compõem o NT nem haviam sido escritos ainda, além de que haviam muitos outros livros que jamais entraram na bíblia, mas que na época eram considerados escritos originais dos apóstolos: outros evangelhos (como o evangelho de Paulo, Pedro, Maria, Judas, e até Jesus), atos (como os atos de Paulo, atos de Pedro), cartas (como III Coríntios), e apocalipses, muito diferentes dos que conhecemos agora.

Cada grupo escolhia os livros que considerava originais – e muitas vezes deturpavam ou fraudavam completamente os textos de acordo com seus propósitos. Não havia um acordo universal até o concílio de Nicéia. Mas, até lá, era cada um por si.

O primeiro cristão que temos registro que fez uma tentativa de reunir um cânon oficial foi Marcion, de quem falamos antes. Mas sua “bíblia” era bem diferente da que conhecemos hoje. Como para ele o deus do Antigo Testamento era um deus de ódio e vingança, ele era considerado um deus menor, inferior, e, portanto, não era o deus verdadeiro. Por isso, nenhum dos livros do AT foram incluídos. Marcion considerava também apenas Paulo como o verdadeiro discípulo de Jesus. Todos os outros discípulos, segundo ele, não entenderam a mensagem verdadeira de Cristo. Assim, em seu cânon, Marcion incluiu apenas as 10 cartas de Paulo que tinha à disposição, ou seja, todas as do Novo Testamento menos I e II Timóteo, e Tito. Marcion incluiu também apenas um evangelho, uma versão alterada de Lucas. E era isso, essa era a sua bíblia.

Marcion, como muitos daquela época, não hesitou em alterar as partes de sua bíblia que considerava erradas. Assim, ele acomodava suas escrituras de acordo com suas crenças.

Será que essa prática também foi usada nos livros que hoje compões a bíblia oficial? Certamente que sim. Não apenas Marcion, mas também aqueles outros cristianismos diferentes eram uma ameaça constante ao “verdadeiro cristianismo”, e assim as partes das escrituras que pareciam apoiar as idéias de Marcion, dos gnósticos, e dos outros eram alteradas pelos escribas. Sabemos disso porque essas alterações não estão presentes nos manuscritos mais antigos. E, analisando criticamente o contexto histórico, entendemos por que elas foram alteradas.

Nas próximas partes desse estudo veremos algumas passagens que os estudiosos consideram adulterações das escrituras mais antigas para enfraquecer os pontos de vista contrários e fortalecer os seus, ou seja, adulterações por motivações teológicas.

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