Durante o segundo e terceiro séculos da era comum –
aproximadamente no tempo em que estavam sendo escritos os últimos livros que
ainda formariam o que chamamos hoje de Novo Testamento – havia uma particularmente
rica diversidade teológica entre os primeiros cristãos.
Na verdade, essa diversidade era tão grande que muitos dos
que se consideravam cristãos naquela época jamais seriam chamados cristãos
hoje.
Durante essa época, além dos cristãos que acreditavam que
havia um único deus, criador de tudo, também havia cristãos que acreditavam
na existência de dois deuses, o deus do Antigo Testamento, o deus de Israel, o
deus da ira, da guerra e da vingança, e o deus do Novo Testamento, o deus de
Jesus, do amor, da paz e do perdão. O maior representante desse tipo de
cristianismo chamava-se Marcion, uma figura importante que veremos com mais
detalhes a seguir. Além disso, havia os cristãos gnósticos que acreditavam na
existência de 12 deuses. Outros diziam ser 30. Outros ainda, 365.
Alguns desses grupos acreditavam, como os cristãos de hoje,
que Jesus era 100% humano e 100% deus. Outros, que Jesus era 100% homem e 0%
deus, mais ou menos como as Testemunhas de Jeová. Outros ainda achavam que
Jesus era 0% humano e 100% divino. Existiam ainda aqueles que tinham a curiosa
crença de que Jesus Cristo era composto por duas entidades distintas que
dividiam o mesmo corpo: o humano Jesus e o divino Cristo.
Alguns grupos achavam que a morte de Jesus era o único caminho
para a salvação. Outros, que a morte de Jesus não tinha nada a ver com salvação
alguma. E outros ainda achavam que Jesus nem mesmo tinha morrido.
Enfim, havia uma profusão de crenças totalmente distintas,
cada uma considerando a si próprio o verdadeiro e único cristianismo tal como
foi ensinado por Jesus Cristo, enquanto todas as outras não passavam de
heresias, deturpações.
Alguém pode se perguntar: Por que simplesmente não liam o
Novo Testamento e tiravam as dúvidas? Oras, acontece que ainda não havia Novo
Testamento. Para falar a verdade, alguns dos livros que compõem o NT nem haviam
sido escritos ainda, além de que haviam muitos outros livros que jamais entraram na
bíblia, mas que na época eram considerados escritos originais dos apóstolos:
outros evangelhos (como o evangelho de Paulo, Pedro, Maria, Judas, e até
Jesus), atos (como os atos de Paulo, atos de Pedro), cartas (como III
Coríntios), e apocalipses, muito diferentes dos que conhecemos agora.
Cada grupo escolhia os livros que considerava originais – e
muitas vezes deturpavam ou fraudavam completamente os textos de acordo com seus
propósitos. Não havia um acordo universal até o concílio de Nicéia. Mas, até
lá, era cada um por si.
O primeiro cristão que temos registro que fez uma tentativa
de reunir um cânon oficial foi Marcion, de quem falamos antes. Mas sua “bíblia”
era bem diferente da que conhecemos hoje. Como para ele o deus do Antigo
Testamento era um deus de ódio e vingança, ele era considerado um deus menor,
inferior, e, portanto, não era o deus verdadeiro. Por isso, nenhum dos livros
do AT foram incluídos. Marcion considerava também apenas Paulo como o
verdadeiro discípulo de Jesus. Todos os outros discípulos, segundo ele, não
entenderam a mensagem verdadeira de Cristo. Assim, em seu cânon, Marcion
incluiu apenas as 10 cartas de Paulo que tinha à disposição, ou seja, todas as
do Novo Testamento menos I e II Timóteo, e Tito. Marcion incluiu também apenas
um evangelho, uma versão alterada de Lucas. E era isso, essa era a sua bíblia.
Marcion, como muitos daquela época, não hesitou em alterar
as partes de sua bíblia que considerava erradas. Assim, ele acomodava suas
escrituras de acordo com suas crenças.
Será que essa prática também foi usada nos livros que hoje
compões a bíblia oficial? Certamente que sim. Não apenas Marcion, mas também
aqueles outros cristianismos diferentes eram uma ameaça constante ao
“verdadeiro cristianismo”, e assim as partes das escrituras que pareciam apoiar
as idéias de Marcion, dos gnósticos, e dos outros eram alteradas pelos
escribas. Sabemos disso porque essas alterações não estão presentes nos
manuscritos mais antigos. E, analisando criticamente o contexto histórico,
entendemos por que elas foram alteradas.
Nas próximas partes desse estudo veremos algumas passagens
que os estudiosos consideram adulterações das escrituras mais antigas para
enfraquecer os pontos de vista contrários e fortalecer os seus, ou seja,
adulterações por motivações teológicas.
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