Seja agradecido por ter uma vida, e abandone o vão e presunçoso desejo por uma segunda. (Richard Dawkins)

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A história por trás da história da mulher adúltera

Esse é sem dúvida um dos episódios mais conhecidos da história de Jesus, talvez de toda a bíblia. Celebrada em cultos, missas, ensinada a crianças. Certamente é a passagem bíblica que mais ganhou versões para o cinema, de tão poderosa e atraente que ela é. Entrou até no filme "A Paixão de Cristo" de Mel Gibson que, apesar de ser um relato apenas das últimas horas de vida de Jesus, incluiu a cena em um dos raros flashbacks no meio do banho de sangue.

A passagem inicia-se em João 8:1, e é bem familiar a todos: Jesus estava de boa, ensinando no templo, quando de repente aparecem alguns fariseus trazendo uma mulher com eles, alegando se tratar de uma adúltera, para que Jesus lhes dissesse o que fazer.

Tratava-se obviamente de uma armadilha. Se Jesus dissesse para soltá-la, o acusariam de violar a lei de Moisés, que ordenava o apedrejamento. Se dissesse para cumprir a lei, o acusariam de contradizer seus ensinamentos anteriores de amor e perdão.

No entanto, Jesus usou de extrema inteligência e malandragem para ver por cima da artimanha dos fariseus, dizendo uma das mais famosas frases da bíblia:

João 8, 7 (...) "Aquele dentre vós que está sem pecado seja o primeiro que lhe atire uma pedra."

Que resposta certeira! Não apenas calou os fariseus, que um a um largaram suas pedras e foram embora, como tirou tanto Jesus quanto a mulher do aperto! É tão perfeita que até parece uma história inventada...

Mas... ela é! Da mesma forma que os doze últimos versículos de Marcos, estudiosos estão certos que essa passagem não passa de uma adição posterior, e não estava nos originais escritos pelo autor do livro de João!

Os motivos são praticamente os mesmos: essa passagem não está presente nos manuscritos mais antigos que foram preservados. Além disso, há outros problemas contextuais. Parece que esqueceram que não se comete adultério sozinho. Porém o homem que praticou adultério com a mulher nem sequer é mencionado. Ele deveria ser apedrejado junto com ela, pois é o que manda a lei de Moisés.

E a resposta de Jesus, apesar de à primeira vista ser perfeita, no fundo é bastante fraca. Qualquer fariseu estudado saberia que em nenhum lugar na lei de Moisés é dito que somente aqueles sem pecado podem participar do apedrejamento. Eles não desistiriam tão fácil! Bastava que os fariseus - que já estavam em fúria para matar Jesus - dissessem isso, que ambos Jesus e a mulher seriam mortos.

Além disso essa passagem gera uma contradição teológica séria com relação à função de Jesus, pois afinal de contas ele acabou não cumprindo a lei de Moisés. Se ele não cumpriu a lei então seu ministério não foi perfeito, e não poderia servir como sacrifício vicário para a expiação dos pecados da humanidade... logo, sua morte foi em vão, e a humanidade não pode ser salva por ele.

Esses motivos levam os estudiosos a estarem certos que essa passagem é na verdade uma adição muito posterior. Ela não está presente em nenhum dos manuscritos mais antigos, é uma história mal contada, que contradiz partes cruciais da doutrina cristã, além de usar palavras e estilos diferentes do utilizado pelo autor no resto do livro.

Mas como ela passou a fazer parte do evangelho? A teoria mais bem aceita é a de que se tratava de uma tradição oral não-oficial sobre Jesus, que em algum ponto foi adicionada na margem de um manuscrito. Dali em diante, algum escriba achou que a nota marginal fazia parte do texto oficial, e o adicionou logo após o fim do capítulo 7. Interessante notar que alguns escribas não sabiam ao certo onde adicionar a passagem, e acabaram colocando, em alguns manuscritos, após João 21:25, e outros, ainda mais interessantemente, após Lucas 21:38.

O que se sabe ao certo é que essa passagem tão famosa e tão querida pelos cristãos, seja lá quem foi que a escreveu, não estava presente nos originais.