terça-feira, 3 de abril de 2012

Adulterações das Escrituras por Motivos Teológicos - II


Cristãos docentistas

Como vimos brevemente na parte anterior, Marcion tinha uma visão muito peculiar de cristianismo. Ele chegou à conclusão – muito coerente, por sinal – de que o deus do Antigo Testamento, cheio de ira e vingança, não poderia ser o mesmo deus do Novo; tratam-se de dois deuses diferentes, com o deus de Israel sendo um deus menor, inferior. Ele criou esse mundo, escolheu Israel como seu povo, exigiu sacrifícios e obrigou a manter todo o rigor da lei mosaica para perdoar os pegados. Dessa forma, o deus de Jesus, do perdão e do amor, viu a situação dos humanos, e enviou Jesus para a nossa salvação.

Como Jesus não foi criado por esse deus inferior, que criou esse mundo, ele não poderia ter um corpo material. Ele não poderia ter nascido, nem poderia sentir fome, nem sede, nem dor. Ele também não poderia morrer de verdade. Ele apenas aparentava ser humano. Assim, em um aparente sacrifício, o deus de Israel aceitou sua “morte” como pagamento dos pecados. E assim a humanidade foi salva.

Então Jesus, segundo Marcion, era 100% divino e 0% humano. Os que acreditavam nisso eram chamados “docentistas”. O nome vem do grego DOKEO, que significa “aparentar”, “parecer”. Como ele era deus, não poderia ser um homem, ele apenas aparentava ser.

Infelizmente nenhum dos escritos de Marcion sobreviveu até os dias de hoje, mas sabe-se que ele foi uma grande ameaça aos cristãos “ortodoxos” de sua época (proto-ortodoxo seria o nome mais apropriado). Sabemos disso porque muitos dos pais da igreja escreveram sobre ele, como Irineu e Tertuliano, citando-o palavra por palavra, com as devidas refutações. Tertuliano chegou a escrever um livro de cinco volumes chamado “Against Marcion” (Contra Marcion).

Cristãos proto-ortodoxos criticavam duramente as idéias de Marcion, pois se Jesus não fosse plenamente humano, então não poderia sofrer, não teria seu sangue derramando, e seu sacrifício humano seria inútil. Sua “morte aparente” não serviria para nada. Não, ele nasceu de verdade, cresceu de verdade, sofreu de verdade, morreu, ressuscitou, e está sentado no céu aguardando voltar, fisicamente, em toda sua glória.

No entanto, escrever tratados não era a única maneira que os cristãos proto-ortodoxos tinham para refutar idéias que eles consideravam heresias: eles podiam fazer alterações diretamente nas escrituras.

Adulterações anti-docentistas das escrituras

O debate sobre as idéias docentistas influenciou os escribas que copiavam os livros que eventualmente entraram para o Novo Testamento. Alguém que quisesse minar as idéias docentistas teria que alterar os textos de modo a incluir aspectos humanos a Jesus. Veremos a seguir quatro passagens que são consideradas inserções posteriores, provavelmente por motivações anti-docentistas, pois elas sempre enfatizam que Jesus era real, de carne, osso e sangue. Elas não estão presentes nos manuscritos mais antigos, e sua ausência é difícil de explicar. Não pode ser usada a desculpa de ser homeoteleuto (quando a repetição de palavras com fonética similar pode induzir ao erro). Todas as passagens são do livro de Lucas, que, como vimos, era o único evangelho usado por Marcion.

Jesus suando sangue

A primeira passagem que veremos é aquela onde Jesus se encontra no monte das oliveiras momentos antes de ser preso. Após encorajar os seus discípulos a “orar, para que não entrem em tentação”, ele se afasta, se ajoelha e reza: “Pai, se queres, passa de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, e sim a tua”:

Lucas,22:39 E, saindo, foi, como de costume, para o monte das Oliveiras; e os discípulos o acompanharam.
Lucas,22:40Chegando ao lugar escolhido, Jesus lhes disse: Orai, para que não entreis em tentação.
Lucas,22:41Ele, por sua vez, se afastou, cerca de um tiro de pedra, e, de joelhos, orava,   
Lucas,22:42dizendo: Pai, se queres, passa de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, e sim a tua.

Em seguida, vem a parte que é considerada pelos estudiosos como uma inserção posterior; ela não está presente em muitos nos melhores e mais antigos manuscritos que possuímos, os Alexandrinos. Algumas bíblias admitem isso usando colchetes e notas de rodapé. Nessa passagem, Jesus é confortado por um anjo, e fica tão angustiado que começa a suar sangue:

Lucas,22:43[Então, lhe apareceu um anjo do céu que o confortava.
Lucas,22:44E, estando em agonia, orava mais intensamente. E aconteceu que o seu suor se tornou como gotas de sangue caindo sobre a terra.]

Após isso, Jesus se levanta, retorna aos discípulos e os encontra dormindo. Ele repete a primeira instrução e em seguida aparece Judas com a multidão para prendê-lo:

Lucas,22:45Levantando-se da oração, foi ter com os discípulos, e os achou dormindo de tristeza,
Lucas,22:46e disse-lhes: Por que estais dormindo? Levantai-vos e orai, para que não entreis em tentação.
Lucas,22:47Falava ele ainda, quando chegou uma multidão; e um dos doze, o chamado Judas, que vinha à frente deles, aproximou-se de Jesus para o beijar.

Existem outros argumentos que sugerem que os versículos 43 e 44 não pertenciam ao texto original. Por exemplo, o estilo de escrita não se parece com o que Lucas utilizava. Existem palavras ali que não são usadas nenhuma outra vez nem em Lucas nem em Atos dos Apóstolos (ambos os livros são considerados escritos pelo mesmo autor), tais como “agonia”, “suor”, “gotas”.

Outro argumento é que existe nesse episódio uma estrutura lingüística que parece deliberada, chamada de “quiasma”, que ocorre quando a primeira sentença corresponde à última, a segunda corresponde à penúltima, etc. A intenção é focar a atenção do leitor ao centro da passagem como ponto principal.

Nesse caso, vemos que sem a passagem duvidosa o quiasma funciona perfeitamente: Jesus pede que “orem, para não cair em tentação”, se afasta deles, se ajoelha, e ora. O centro da passagem se torna a própria oração de Jesus, pedindo que a vontade de deus seja feita. Em seguida, termina a oração, se levanta, volta para os discípulos e, ao encontrá-los dormindo, repete a instrução “orem, para que não entrem em tentação”.

A intenção do autor é clara, intensificar a oração de Jesus e facilitar a sua interpretação: Jesus pede para seus discípulos orarem para afastar as tentações. Em seguida, ele próprio ora para deus afastar dele esse cálice, mas que mesmo assim que a sua vontade seja feita. E o que acontece quando ele volta?  Seus discípulos justamente ao invés de orar, caíram em tentação e dormiram. Ao ver os inimigos, fugiram. Jesus, que permaneceu orando, obedeceu à vontade de deus e foi para o martírio.

Com a adição das passagens duvidosas o quiasma é completamente destruído. O centro da passagem se torna a agonia de Jesus, uma agonia tão grande que fez seu suor se transformar em sangue. Ao invés de enfatizar que a vontade de deus deve ser feita, enfatizou que a oração de Jesus não serviu em nada para acalmar sua agonia.

Essa passagem simplesmente não parece se encaixar na narrativa, e o motivo é muito simples: ela foi inserida posteriormente. O motivo, como nós vimos, pode ser para combater idéias docentistas. Curiosamente essa passagem foi utilizada por cristãos proto-ortodoxos como Justino, Irineu e Hippolytus para refutar a idéia de que Jesus não era um ser humano real, já que eles representavam tão nitidamente o sofrimento humano e agonia de Jesus.

O sangue derramado “por você”

Uma das mais famosas passagens da bíblia, recitada em todas as missas, também não está presente nos manuscritos mais antigos, tanto gregos quanto na versão em latim. É aquela em que Jesus está na última ceia:

Lucas,22:17Recebendo um cálice, ele deu graças e disse: "Tomem isto e partilhem uns com os outros.
Lucas,22:18Pois eu lhes digo que não beberei outra vez do fruto da videira até que venha o Reino de Deus".
Lucas,22:19Tomando o pão, deu graças, partiu-o e o deu aos discípulos, dizendo: "Isto é o meu corpo dado em favor de vocês; façam isto em memória de mim".
Lucas,22:20Da mesma forma, depois da ceia, tomou o cálice, dizendo: "Este cálice é a nova aliança no meu sangue, derramado em favor de vocês.
Lucas,22:21"Mas eis que a mão daquele que vai me trair está com a minha sobre a mesa.

Pode parecer estranho, por causa da familiaridade do texto, porém toda a parte em destaque, desde “dado em favor de vocês”, até “derramado em favor de vocês”, é espúria. Nos manuscritos mais antigos, Jesus simplesmente diz “Isto é o meu corpo. Mas eis que a mão daquele que vai me trair está com a minha sobre a mesa.” Até a bíblia Nova Versão Internacional admite isso em suas notas de rodapé.

Uma adição como essas é muito mais fácil de explicar do que uma remoção. Por que um escriba removeria toda essa parte? Não faria sentido. A adição dela, pelo contrário, é bastante conveniente, já que pode ser usada contra os docentistas ao mostrar que Jesus de fato tinha corpo, tinha sangue, e foi derramado de verdade.

Outra curiosidade, essa adição além de tudo não representa o entendimento que o escritor de Lucas tinha a respeito da morte de Jesus. Por mais incrível que possa parecer, nunca, em nenhum outro lugar do livro de Lucas e Atos, é indicado que a morte de Jesus serve para perdoar os pecados. Inclusive onde essa indicação ocorre em Marcos (a fonte usada em Lucas), Lucas altera as palavras ou as elimina. Isso por si só já é assunto para outro tópico, mas quem quiser, compare Marcos 10: 45 com Lucas 22: 24-30  e Marcos 15:39 com Lucas 23: 47, só para ver alguns exemplos.  Lucas simplesmente interpretava a morte de Jesus de outra forma. Para ele, a morte de Jesus serve para fazer as pessoas reconhecerem a sua culpa perante deus (já que ele morreu mesmo sendo inocente). Assim que as pessoas reconhecerem seus pecados, elas se voltam para deus em arrependimento, e seus pecados são perdoados. Podemos ver essa interpretação, por exemplo, nos capítulos 3, 4 e 13 de Atos dos Apóstolos. Para Lucas, não é a morte de Cristo que traz a salvação, e sim o arrependimento pela culpa e o reconhecimento dos pecados.

Novamente, uma adição posterior provocada por uma interpretação diferente dos cristãos proto-ortodoxos destoou a intenção original do autor, e a motivação novamente foi para dar humanidade a Jesus Cristo, provavelmente para contrapor idéias docentistas.

Os lençóis que ficaram para trás

Outro verso que pode ter sido adicionado por cristãos proto-ortodoxos ocorre em Lucas 24: 12, logo após Jesus ser ressuscitado. Algumas mulheres seguidoras de Jesus foram ao sepulcro e, encontrando ele vazio, dois homens falaram que Jesus não estava mais lá, porque ressuscitou. Elas voltam para os discípulos, que não acreditaram, chamando suas histórias de “desvarios”. Então, em alguns manuscritos, encontra-se essa passagem:

Lucas,24:12Pedro, porém, levantando-se, correu ao sepulcro e, abaixando-se, viu só os lençóis ali postos; e retirou-se, admirando consigo aquele caso.

Novamente, esse verso não está presente nos manuscritos mais antigos. Novamente, ele possui palavras não usadas em nenhum outro lugar em Lucas (por exemplo, é usado outra palavra para “lençóis” em Lucas 23: 53). Novamente, é difícil explicar por que alguém removeria essa passagem. Agora, para acrescentá-la há justificativas plausíveis: demonstra que Jesus não era nenhum “fantasma”, que ele era de carne e osso, apoiando muito bem a causa anti-docentista dos cristãos proto-ortodoxos.

Elevado ao céu?

A última passagem que veremos nesse estudo encontra-se no final do livro de Lucas:

Lucas,24:50 E levou-os fora, até Betânia; e, levantando as suas mãos, os abençoou.
Lucas,24:51 E aconteceu que, abençoando-os ele, se apartou deles e foi elevado ao céu.

A parte final, “e foi elevado ao céu”, é uma inserção que se encontra em apenas alguns manuscritos antigos, inclusive em um dos melhores manuscritos que temos preservado até hoje, o Codex Sinaiticus. Essa é uma adição significante porque enfatiza a forma física de Jesus em sua ascensão aos céus, ao invés do insípido “se apartou deles”.

No entanto, é difícil acreditar essa passagem fazia parte do original escrito pelo autor de Lucas, já que ele também escreveu o livro de Atos dos Apóstolos, e nesse outro livro também há um relato da ascensão de Cristo, porém bem diferente... nele, Jesus subiu aos céus 40 dias após a ressurreição!

Será que o autor esqueceu o que escreveu no final de um livro, para se contradizer logo no início de outro? Certamente que não. Trata-se de uma adição posterior, com o intuito de enfatizar um ponto de vista específico, ou seja, uma adulteração do texto original com motivações teológicas anti-docentistas.

Um comentário:

  1. Nossa, eu conhecia sobre cristãos gnósticos, mas não sabia dos docentistas. Muito legal o texto!

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