sábado, 14 de abril de 2012

Adulterações das Escrituras por Motivos Teológicos - III

Continuaremos com o nosso estudo sobre as adulterações nas escrituras por motivações teológicas. Se você ainda não viu, pode acompanhar a introdução na parte I e as adulterações anti-docentistas na parte II.

Os cristãos gostam de pensar que o cristianismo primitivo era uma unidade coesa de idéias, com apenas alguns problemas localizados os quais podiam ser tratados com algumas simples cartas e admoestações dos apóstolos. A verdade é que era bem o oposto disso. Haviam várias formas de cristianismo completamente conflitantes entre si, cada um alegando ser "o" verdadeiro cristianismo, e cada um com a sua própria literatura, muitas vezes com passagens forjadas ou falsificados em sua totalidade. Essa era uma forma de tentar persuadir os fiéis a se manterem na "religião correta", e se afastar das "heresias", deixando bem claro que por religião correta é a "minha crença", e heresia é a sua.

Veremos agora um outro grupo de cristãos, que se encontravam no lado diametralmente oposto aos docentistas.

Os cristãos adocionistas

Um grande número de grupos cristãos no segundo e terceiros séculos da era comum adotavam uma visão "adocionista" de Cristo. Essa visão é chamada assim porque os seus fiéis acreditavam que Jesus não era divino mas 100% humano de carne e osso, ao qual deus havia "adotado" na hora do seu batismo.

Um grupo específico de cristãos judeus que ganhou notoriedade na época eram os chamados ebionitas. Não se sabe ao certo por que receberam esse nome, mas acredita-se que pode ter sido originado da palavra grega "ebyon", que significa pobre.

Para pertencer a esse grupo, o fiel teria que ser como Jesus, ou seja, judeu. Teria que ser circuncidado se fosse homem, e seguir todas as 613 leis de Moisés. Certamente que não acreditavam na trindade, já que Jesus era um ser humano comum, nascido de uma mulher comum (nascimento não-virginal), e viveu em uma  lar judeu comum.

Para eles, Jesus era apenas um rigoroso seguidor da lei mosaica, e, por causa de ser extremamente justo aos olhos de deus, foi adotado por ele durante o seu batismo, onde se ouviu uma voz dizendo que ele era o seu filho unigênito. Desse momento em diante Jesus seguiu a missão dada por deus, que era morrer na cruz como um sacrifício pela humanidade. Depois, deus o ressuscitou, e o elevou até os céus, onde está aguardando retornar para julgar as nações.

Assim, de acordo com o ebionitas, Jesus não pré-existiu, não nasceu de uma virgem, não era divino em si. Ele era apenas um ser humano especial, escolhido por deus para ser seu filho adotivo, e executar uma missão aqui na Terra.

Adulterações anti-adocionistas das escrituras

Em resposta a essas alegações, cristãos proto-ortodoxos insistiam que Jesus não era um mero ser humano, mas realmente divino, o próprio deus encarnado. Ele nasceu sim de uma virgem, e era superior aos homens porque ele era diferente por natureza, e no seu batismo deus não fez dele o seu filho adotivo, mas apenas afirmou que ele era e sempre foi de fato seu filho unigênito, desde o início dos tempos.

Algumas vezes, alegações não eram suficientes, e os cristãos proto-ortodoxos se valiam de adulterações das escrituras para validar ou enfatizar seus pontos de vista.

Quem se manifestou em carne?

Já foi discutido aqui uma passagem em que um erro de copista em I Timóteo 3:16 pode ter implicações teológicas sérias por mudar drasticamente a interpretação da passagem, alterando a palavra omicron-sigma (ΟΣ), que significa "aquele", por teta-sigma (ΘΣ) com um traço em cima, uma abreviatura para a palavra "Deus".

1 Timóteo 3:16 Evidentemente, grande é o mistério da piedade: Aquele que foi manifestado na carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória. (Versão João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada)

1 Timóteo 3:16 E, sem dúvida alguma, grande é o mistério da piedade: Deus se manifestou em carne, foi justificado no Espírito, visto dos anjos, pregado aos gentios, crido no mundo, recebido acima na glória.  (Versão João Ferreira de Almeida Corrigida e Revisada, Fiel)

Agora nós já podemos entender o por quê. Provavelmente o escriba achou uma boa oportunidade de combater idéias adocionistas, fortalecendo a idéia de que Jesus era de fato Deus manifestado em carne.

Pai? Que pai?

Outra modificação anti-adocionista aconteceu em Lucas, na parte José e Maria levam o bebê Jesus ao tempo e Simeão o abençoa, e é dito que "seu pai e sua mãe estavam maravilhados do que se dizia dele". Peraí, seu pai? Como é que o texto diz que José é o pai de Jesus se ele nasceu de uma virgem? Assim, não é surpresa que em muitos manuscritos os escribas alteraram o texto para eliminar uma possível interpretação adocionista, alterando para "José e sua mãe", como podemos ver aqui:

Lucas 2:33 E estavam o pai e a mãe do menino admirados do que dele se dizia. (Versão João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada)

Lucas 2:33 
Enquanto isso, seu pai e sua mãe se admiravam das coisas que deles se diziam. (Versão João Ferreira de Almeida Atualizada)

Lucas 2:33 E José, e sua mãe, se maravilharam das coisas que dele se diziam. (Versão João Ferreira de Almeida Corrigida e Revisada, Fiel)

Lucas 2:33 And Joseph and his mother marvelled at those things which were spoken of him. (Versão King James)


Um fenômeno similar ocorreu em Lucas 2:43, quando José, Maria e Jesus vão a um festival em Jerusalém, e ao voltarem, é dito que Jesus ficou para trás sem que seus pais soubessem. Mas José não era de fato o pai de Jesus, então vários escribas "corrigiram" isso, alterando o texto para "José e sua mãe", como podemos ver ainda em algumas versões da bíblia.

Lucas 2:43 Terminados os dias da festa, ao regressarem, permaneceu o menino Jesus em Jerusalém, sem que seus pais o soubessem. (Versão João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada)

Lucas 2:43 e, terminados aqueles dias, ao regressarem, ficou o menino Jesus em Jerusalém sem o saberem seus pais(Versão João Ferreira de Almeida Atualizada)

Lucas 2:43 E, regressando eles, terminados aqueles dias, ficou o menino Jesus em Jerusalém, e não o soube José, nem sua mãe(Versão João Ferreira de Almeida Corrigida e Revisada, Fiel)

Lucas 2:43 And when they had fulfilled the days, as they returned, the child Jesus tarried behind in Jerusalem; and Joseph and his mother knew not of it. (Versão King James) 


Essas alterações não foram acidentais, elas tinham um propósito, que era o de evitar uma "interpretação errada" por parte de cristãos adocionistas.

"Tu és meu filho, e hoje te gerei"

Uma das mais intrigantes variações anti-adocionistas nos manuscritos ocorre justamente na hora do batismo de Jesus, onde os adocionistas insistem que foi nessa hora em que deus o escolheu como filho adotivo. 

No evangelho de Lucas e de Marcos, quando Jesus é batizado, os céus se abrem, o espírito santo desce na forma de uma pomba, e escuta-se uma voz nos céus. Na maioria dos manuscritos, a voz em Lucas diz a mesma coisa que em Marcos, "tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo". No entanto, em um antigo manuscrito grego e em vários manuscritos latinos, em Lucas é dito algo bem diferente: "tu és meu Filho, e hoje eu te gerei".

Hoje eu te gerei! Não é extremamente sugestivo que Jesus se tornou o Filho de Deus na hora do seu batismo?

Mas então, qual das duas formas é a original? A vasta maioria dos manuscritos gregos traz a forma tradicional,  "tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo", então podemos ser tentados a achar que essa é a forma correta e a outra a alteração. O problema é que a outra versão,  "tu és meu Filho, e hoje eu te gerei", é a mais citada entre os pais da igreja no período anterior ao da produção da maioria dos manuscritos que temos hoje. É citada no segundo e terceiro séculos em toda a parte em Roma, Alexandria, norte da África, Palestina, Gales, Espanha. Em quase todas instâncias, é a forma  "tu és meu Filho, e hoje eu te gerei" que é usada!

E não é o fato de haver mais manuscritos que automaticamente torna a passagem mais confiável. Como a passagem em Lucas destoa da de Marcos, é possível que os escribas tentassem harmonizá-las, eliminando a contradição, ao mesmo tempo em que combatem uma possível interpretação adocionista.

Único Filho ou único deus?

Uma última alteração anti-adocionista que veremos aqui pode ser encontrada no primeiro capítulo do evangelho de João. O livro começa com o famoso prólogo: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus".

Ao chegar no versículo 18, duas variantes são encontradas:

João 1:18 Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou. (Versão João Ferreira de Almeida Revista e Atualizada) 

João 1:18 Ninguém jamais viu a Deus. O Deus unigênito, que está no seio do Pai, esse o deu a conhecer. 
(Versão João Ferreira de Almeida Atualizada) 

João 1:18 Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou. (Versão João Ferreira de Almeida Corrigida e Revisada, Fiel) 

João 1:18 No man hath seen God at any time, the only begotten Son, which is in the bosom of the Father, he hath declared him. 
(Versão King James) 

Qual é a correta, o "Deus unigênito", ou o "Filho unigênito"? Os melhores e mais antigos manuscritos Alexandrinos indicam que é a primeira, "Deus unigênito". Mas é interessante que essa forma raramente é encontrada em manuscritos não-alexandrinos. É possível que essa variante tenha se tornado popular apenas em Alexandria por algum escriba com idéias anti-adocionistas. Isso explicaria por que a vasta maioria dos manuscritos encontrados em todos os outros lugares não usa "Deus unigênito", mas sim "Filho unigênito".

Além disso, João chama Jesus de "Filho unigênito" em vários outros lugares, mas nunca se refere a "Deus unigênito". É até difícil entender o que isso significa ao certo. Por "unigênito" entende-se filho único, e chamar um Deus de unigênito significa que esse Deus teve um pai, e portanto não pode haver um único Deus.

É mais provável, portanto, que essa passagem foi alterada por algum escriba alexandrino que não estava confortável com o status dado a Jesus, e decidiu mudar isso. Assim, Jesus não é um mero Filho unigênito, e sim o próprio Deus unigênito, provavelmente para usar contra cristãos adocionistas.

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