Se alguém precisa de religião para ser bom, a pessoa não é boa, é um cão adestrado. (Rimpoche)

domingo, 29 de abril de 2012

Texto fora de contexto é pretexto?

Ainda sobre esse interessante debate entre Dawkins e o cardeal Pell, vemos que aos 29 minutos quando o assunto se voltou para a evolução, o clérico falou o seguinte sobre a religiosidade de Charles Darwin:

"Mas há muitas coisas que a evolução não explica. Darwin entendeu isso. Darwin era teísta, porque ele disse que não podia acreditar que o imenso cosmos e todas as coisas lindas do universo surgiram ou por acaso, ou por necessidade. Ele disse: 'Eu tenho que ser classificado como um teísta'." - Cardeal George Pell.

Dawkins protestou na hora: "Isso não é verdade. Isso simplesmente não é verdade!", ao que o cardeal respondeu enfaticamente que "está na página 92 de sua autobiografia, vai dar uma olhada", arrancando aplausos de sua platéia de ovelhas.

É uma afirmação muito interessante e ousada, visto que graças à magia da internet temos à disposição a obra completa de Charles Darwin disponível on-line nesse site aqui: http://darwin-online.org.uk/biography.html.

Assim, podemos conferir o que está escrito na página 92 de sua autobiografia com facilidade. Nessa página, de fato, ele diz:

"Outra fonte de convencimento da existência de Deus, conectado à razão e não aos sentimentos, me impressiona como tendo muito mais força. Isso segue da extrema dificuldade ou até impossibilidade de conceber esse imenso e lindo universo, incluindo o homem e sua capacidade de olhar para o passado distante e para o futuro longínquo, como o resultado de puro acaso ou necessidade. Assim, refletindo, eu sou compelido a olhar para a Causa Primeira tendo uma mente inteligente em um grau similar ao do homem; e eu devo ser chamado de teísta." - Charles Darwin.

Pois é... parece que o cardeal estava certo... ponto para ele...

Porém, se ele tivesse lido o parágrafo seguinte, até a página 94, ele veria que Darwin estava falando de como pensava antigamente, e que naquele momento ele se considerava agnóstico:

"Essa conclusão estava forte em minha mente naquele tempo, desde tanto quanto posso me lembrar, quando escrevi o 'A Origem das Espécies'; e desde lá vem gradualmente, com pequenas flutuações, ficando mais fraca. Mas então surge a dúvida - pode a mente do homem, que foi, como eu fortemente acredito, desenvolvida à partir das mentes possuídas pelos mais inferiores dos animais, ser confiável quando chega a tão importantes conclusões? Podem ser que elas não sejam o resultado da conexão entre causa e efeito que para nós parece tão necessária, mas que provavelmente dependam apenas de simples experiência adquirida? Nem devo subestimar a probabilidade da constante inclusão da crença em Deus nas mentes das crianças produzindo um efeito tão forte e talvez adquirido nos seus cérebros ainda em desenvolvimento, que seria difícil para elas eliminar a sua crença em Deus, assim como um macaco mantém instintivamente o seu medo e ódio de cobras.

Eu não consigo sequer fazer de conta que posso lançar um pouco de luz sobre esses problemas tão difíceis. O mistério do princípio de todas as coisas é insolúvel a nós; e por isso preciso me conformar em permanecer agnóstico." - Charles Darwin

Então, como vemos, Charles Darwin foi bem claro quanto ao seu agnosticismo.

Reparem como há uma nota de rodapé que diz que a sua mulher havia pedido ao editor que não publicasse esse parágrafo - e, de fato, esse e muitos outros parágrafos foram suprimidos nas primeiras edições, por causa das implicações religiosas que eles teriam. Isso dá uma idéia do conflito pelo qual ambos Charles e sua mulher passaram. Charles e sua mulher eram extremamente religiosos. No entanto, ele foi gradualmente perdendo a sua crença à medida em que ia desenvolvendo suas teorias, até que no final da vida se considerava agnóstico.

Voltando ao cardeal Pell, agora fica claro que ele simplesmente retirou a frase de contexto completamente (e não da forma tosca como os cristãos dizem que os ateus fazem), o que significa duas possibilidades: ou ele não leu o livro e simplesmente decorou a página, o que faz dele um ignorante, ou leu e omitiu o fato de propósito, o que o seria um ato de pura desonestidade. Acredito que foi a primeira opção; ele jamais leu o livro, senão não ia deixar de entender algo tão claro. Por outro lado, falar com tanta autoridade como se tivesse lido (e ainda manda Dawkins ler!) também foi um ato de desonestidade.